terça-feira, 28 de abril de 2015

Narrativa de Aventura - exemplo

Robinson Crusoé
Celebrei o vigésimo sétimo aniversário da minha vida na
ilha de modo especial. Tinha muito a agradecer a Deus, agora mais do que antes, já que  os três últimos anos foram particularmente agradáveis ao lado de Sexta-Feira. Tinha também o estranho pressentimento de que este seria o último aniversário comemorado na ilha.
O barco estava guardado, em lugar seco e protegido,
esperando a época das chuvas terminar para empreender a viagem até o continente.
Enquanto aguardava tempo bom para lançar-me ao mar,
eu preparava todos os detalhes necessários ao sucesso da
jornada: armazenar milho, fazer pão, secar carne ao sol,
confeccionar moringas de barro para transportar água... Sexta-Feira andava pela praia, à procura de tartarugas. Voltou correndo, apavorado.
— Patrão, patrão! Três canoas estão chegando com muitos inimigos! Já estão muito perto...
Também me assustei. Não contava com o inesperado: os selvagens não vinham à ilha no tempo das chuvas. Espiei-os do alto da  paliçada com os binóculos. Desembarcavam muito próximos do meu ―castelo‖, logo depois do ribeirão. O perigo nunca fora tão iminente...
— Não são gente do seu povo, Sexta-Feira?
— Não, patrão. São inimigos. Eu vi direitinho...
— Assim de tão longe? Como é que você sabe?
— Eu sei. São todos inimigos. Talvez, o objetivo de todos eles seja me pegar!
Acalmei-o. Claro que não tinham vindo até  a ilha por causa dele! Já se passara muitos anos... Mas, de qualquer forma, o perigo era grande. Estavam tão próximos que poderiam descobrir-nos facilmente. Se quiséssemos ter alguma chance de sobrevivência, precisávamos
atacá-los primeiro, quando não esperassem. Era fundamental fazer da surpresa nosso terceiro
guerreiro!
— Você pode lutar? — perguntei ao meu
companheiro.
— Sexta-Feira pode guerrear sim, patrão!
Basta dizer o que devo fazer...
Carreguei duas espingardas e quatro mosquetes  com chumbo grosso para dar a impressão de muitas balas. E preparei ainda duas pistolas. Reparti as armas de fogo com Sexta-Feira e rumamos para o acampamento dos antropófagos.
Eu levava também a espada, presa à cintura, e meu companheiro, seu inseparável machado. Protegidos pelas árvores, chegamos a menos de quarenta metros do inimigo. Na hora, não pude contá-los todos. Posteriormente, somando os mortos e os fugitivos,
descobri que eram vinte e um. As chamas da fogueira já ardiam, como línguas vorazes à espera da gordura humana, que pingava de membros e partes cortadas para alimentar sua gula.
Eu relutava em atacá-los. Estava mesmo disposto a aguardar o máximo possível, escondido no meio do bosque. E, se descobrisse que iriam embora sem andar muito pela ilha, deixá-los-ia voltar sem importuná-los.
O grupo todo encontrava-se ocupado em soltar as cordas que prendiam mãos e pés de um prisioneiro. Por fim, desmancharam a roda que ocultava o condenado à morte e o arrastaram para perto do fogo. Meu Deus, o prisioneiro era um homem branco! Não, não iria aguardar os acontecimentos.  Um homem cristão como eu estava prestes a ser devorado por selvagens antropófagos... Na minha ilha. Eu não podia deixar aquela bestialidade prosseguir!
Fiz sinal a Sexta-Feira. Estava pronto? Então que atirasse com a espingarda, que seguisse meu exemplo...
— Agora, Sexta-Feira! — berrei.
Os dois tiros ecoaram simultaneamente. Por um instante, o mundo parou. Horrorizados, os selvagens viram vários dos seus guerreiros caírem sem vida. Não conseguiam compreender de onde vinha a morte. As espingardas, carregadas com chumbo grosso, provocaram um enorme estrago entre os inimigos: cinco caíram mortos, três outros feridos. [...]
O mundo então pareceu vir abaixo: a praia virou um enorme pandemônio. Tínhamos sido descobertos, mas ainda assim os selvagens não se atreviam a atacar-nos. Gritos de guerra e raiva misturavam-se aos
de dor dos feridos.
Corri ao encontro do inimigo, Sexta-Feira seguiu atrás de mim. No meio do caminho, já na areia da praia, paramos para garantir a pontaria do tiro do último mosquete carregado. Mais alguns mortos e feridos caíram ao chão. Os que ainda se mantinham em pé não sabiam se corriam ou se lutavam. Fomos ao seu encontro.
Ao passar pelo homem branco, entreguei-lhe minha pistola: podia precisar dela para defender-se. A luta prosseguia, agora num combate corpo a corpo. Matei mais dois, três, quatro  — não posso precisar quantos — com a espada. [...] Ainda assim, três inimigos conseguiram saltar dentro de um dos barcos e fugiram para o mar. Dois pareciam ilesos; o outro sangrava, estava gravemente ferido. [...]
Corremos para a outra canoa, encalhada na areia da praia. Antes de fazê-la navegar, descobrimos, deitado no seu fundo, mais um prisioneiro amarrado. De repente, a máscara de guerra, em que se transformara o rosto de Sexta-Feira, tornou-se doce e suave ao avistar o velho homem, imóvel no chão do barco.
Sexta-Feira tratou-o com muito cuidado, dedicação e carinho. Soltou o velho, sentou-o, abraçou-o, apoiou sua cabeça contra seu forte peito, enquanto afagava com mão de criança seus cabelos... Sem o saber, Sexta-Feira acabara de salvar da morte o seu próprio pai.
Os fugitivos já iam longe no mar. Era inútil persegui-los.
[...]
 
 
Daniel Defoe. Robinson Crusoé: a conquista do mundo numa ilha.
Adaptação para o português: Werner Zotz. São Paulo: Scipione, 1990. p. 85-9.

Vocabulário:
Antropófago: ser humano que se alimenta de carne humana.
Bestialidade: comportamento que assemelha o homem à besta (animal); brutalidade, estupidez,
Moringa: vaso de barro bojudo e de gargalo estreito usado para acondicionar e conservar fresca e
Mosquete: arma de fogo similar a uma espingarda.
Paliçada: cerca feita com estacas apontadas e fincadas na terra, que serve de barreira defensiva.
Pandemônio: mistura confusa de pessoas ou coisas; confusão.  

Narrativa de Aventura - exemplo


Uma aventura de Pedro Malasartes
 
            Pedro Malasartes, uma vez, arranjou um emprego de guardador de porcos. Mas ele vivia com raiva do patrão, que dava a ele pouca comida e pagava muito mal.
           Um dia Pedro estava guardando os porcos perto de um lamaçal. Então passou por ali um homem que quis comprar os animais. Pedro Malasartes fingiu que era dono deles e vendeu os porcos todos, com a condição de ficar com seus rabos.
         Assim que o homem foi embora, enterrou os rabos com a ponta de fora e começou a gritar pelo patrão:
          — Patrão, patrão, os porcos se afundaram todos no lamaçal. Socorro! Patrão, patrão!
         O patrão, ouvindo o berreiro, veio correndo. Quando viu os rabos na lama, pegou num dele e puxou, pensando que puxava um porco. Mas só saiu o rabo mesmo.
         Então, Pedro Malasartes, muito desabusado, preveniu o patrão:
         — Assim não, patrão, que o rabo não agüenta. Eles só saem daí se a gente arrancar com a pá.
         — Pois vá buscar a pá, anda! Traga logo as duas.
         Pedro Malasartes correu até a casa. Ele sabia que o patrão guardava duas bolsas de dinheiro bem escondidas. Então ele pediu à patroa as duas bolsas, dizendo que o patrão é que tinha mandado. A mulher ficou desconfiada.
          Então, Pedro gritou de longe para o patrão, fazendo grandes gestos:
        — Não é para pegar as duas?
        O patrão, pensando que ele estava falando de pás, confirmou:
         — As duas! Todas as duas!
         A mulher entregou as duas bolsas a Malasartes, que caiu no mundo e nunca mais voltou.
 
Ruth Rocha

Narrativa de Aventura

O que é uma narrativa de aventuras?
Uma narrativa é um texto que apresenta acontecimentos numa sequência temporal, isto é, um após o outro. Apresenta também um jogo de causa e efeito, de onde sempre resulta uma transformação. As ocorrências que marcam as relações de causa e efeito vão se repetindo até momento do clímax ou desfecho. Esse é o momento máximo da narrativa, aquele esperado pelo leitor. Considerando uma narrativa de aventura, esse texto vai apresentar, certamente, um personagem heroico, acontecimentos mais marcantes, com resultados fantásticos, inéditos. Ex: A ilha do tesouro; As aventuras de Tom Sawyer; As viagens de Gulliver; Odisseia; Ilíada, e tantos outros.  
 
1. Narrador x Leitor: 

O narrador, em uma história de aventura, é responsável por passar para o leitor a sensação de que as ações são possíveis e, mais do que isso, ele é responsável por transmitir para o leitor a sensação de ser parte integrante da história. 

2. Conteúdo temático: 

Geralmente, as narrativas de aventura levam suas personagens para lugares nunca antes imaginados, permitindo que elas entrem em contato com povos e culturas diferentes. 

3. Construção composicional: 

As ações são divididas de acordo com a dinâmica do enredo:
a) Apresentação das personagens: Nesse momento algumas circunstâncias anteriores à narrativa também são discutidas;
b) Complicação: Nessa parte do enredo a narrativa vai desenrolar-se a partir de algum acontecimento que produzirá consequências;
c) Desfecho: Os obstáculos, elementos muito comuns às narrativas de aventuras, serão superados. A personagem principal sofrerá uma transformação como consequência de sua experiência aventuresca.

4. Marcas estilísticas:

Vocabulário: Nas novelas de aventura, é comum o uso de um vocabulário mais concreto, permitindo assim o uso de palavras que descrevam o espaço da narrativa, assim como o ponto de vista do personagem principal;
O texto pode ser narrado em 1ª ou 3ª pessoa;
Uso amplo de adjetivação;
Apresentação de uma linha temporal construída pelos eventos que se sucedem.


Uma contribuição de Luana Castro
Graduada em Letras
 

terça-feira, 7 de abril de 2015

Como escrever um romance de aventura

Romances de aventura podem cobrir uma grande variedade de épocas e assuntos, de histórias ocidentais às de piratas aventureiros, das histórias fantasiosas como as de Tolkien às fábulas de exploração no estilo de Indiana Jones. O elemento que elas têm em comum é a ação épica, uma ênfase nas ações excitantes e um desejo de transportar o leitor a uma época ou lugar muito distantes. Incontáveis romances de aventura foram escritos com o passar dos anos, mas muitos deles sucumbiram pela escrita ruim, enredos banais e milhares de clichês. Se está pretendendo escrever um romance de aventura, vale a pena escrever o melhor que você puder.
  1.  Defina o enredo e seus personagens. Um romance de aventura precisa de um herói para que os leitores acompanhem — alguém competente e forte, mas que possua alguns pontos fracos humanos para que seja possível que o leitor se identifique com ele. O herói precisa de um inimigo com quem lutar (alguém mal, mas que também possua qualidades humanas para torná-lo acessível), assistentes ou companheiros para ajudá-lo, obstáculos para superar e um grande propósito ou uma busca de grande importância para alcançar.

  2. Esboce seu enredo, identificando como ele começa, que fatos acontecem durante a jornada do herói e como (ou se) ele alcança seu objetivo no final. Os eventos da história da aventura precisam estar conectados uns aos outros e levar constantemente à uma conclusão empolgante. Eles exigem lógica interna (ou seja, deve existir um motivo para acontecerem) e deve haver um ritmo natural na passagem de um para o outro. Além disso, os personagens também precisam se submeter a uma mudança: é preciso mostrar seu crescimento e experiência durante a ação (algo a mais do que apenas encontrar o tesouro ou salvar a garota).

  3. Elimine os clichês do seu enredo. Elementos que já foram vistos milhares de vezes ou que derivam naturalmente de uma fonte muito conhecida devem ser evitados. Prefira trazer novas reviravoltas às suas situações: desafios que não tenham aparecido em romances anteriores, novas maneiras de sair de situações antigas, características do personagem que desafie à norma.

  4. Escreva seu romance de aventura se baseado na sua estrutura original. Você precisa estabelecer 
    os personagens principais cedo, definir suas posições relativas no enredo (herói, vilão, etc), criar o que eles têm a ganhar ou perder e descrever os fatos que os levam ao final. O clímax precisa surpreender os leitores: o "money shot", em termos cinematográficos, onde tudo será ganho ou perdido. Os fatos anteriores devem levar a isso, e você pode desejar incluir um breve desenlace final depois, para amarrar quaisquer pontas soltas do enredo.

  5. Mantenha um tom vivo durante seu romance. Histórias de aventura se desenvolvem com base na excitação: perseguições em alta velocidade, fugas no último segundo, planos desesperados nascidos de uma inspiração febril e apostas de vida ou morte se o herói falhar. Mesmo que o desenvolvimento tenha pontos mais baixos entre as atividades do herói, certifique-se de que você não fique atolado em detalhes excessivos ou em diálogos pesados.

  6. Revise e edite seu romance para melhorar o texto. Poucas partes da escrita ficam perfeitas no primeiro rascunho, e o processo de revisão irá ajudar o seu romance a se tornar o melhor possível. Você também pode querer deixar um amigo ou colega confiável editá-lo: alguém familiar com a estrutura literária e que possa fornecer uma crítica honesta e construtiva.

    Extraído de: http://www.ehow.com.br/escrever-romance-aventura-como_23294/

Romance de Aventura

Um mergulho no mais gigantesco abismo que se pode imaginar. Essa foi a sensação de Eugênio
logo depois de comandar com o controle o seu próprio cibertransporte. Uma explosão aguda feriu-lhe os ouvidos e um zumbido insuportável tomou conta de seu cérebro.
Ele foi lançado de cabeça no centro de um redemoinho espiralado sem conseguir controlar seu
corpo, jogado livremente de um lado para o outro numa queda sem fim. Na verdade, nem mesmo
sabia se ainda tinha corpo.
“Estou morrendo”, pensou ele, assustado. “A experiência fracassou.”
Quis se agarrar a alguma coisa numa tentativa de parar de cair, mas só o nada estava ao alcance da
mão. Tentou gritar, mas não conseguiu; a voz saía como um fiapo em meio ao barulho ensurdecedor.
Os olhos se ofuscavam com a luz brilhante e multicolorida, braços e pernas sacudiam descontrolados enquanto o garoto despencava no vazio.
Depois de um tempo interminável, tudo parou de repente. Deitado de costas no chão, Eugênio não
via mais o redemoinho em forma de espiral nem as luzes cheias de cores. O zumbido foi diminuindo
aos poucos e um silêncio doído tomou conta do lugar.
O garoto bateu no peito para se certificar de estar mesmo vivo. Notou, aliviado, que o controle
do cibertransporte estava firmemente seguro entre os dedos e que o capacete continuava enfiado na
cabeça. Apesar do susto, sentia-se leve, quase capaz de sair flutuando. Foi quando viu à sua frente o
que parecia ser a entrada de um túnel.
Levantou devagar e caminhou até lá. Era mesmo um túnel escuro e comprido, tão comprido e tão
curvo que não dava para avistar a saída. Eugênio viu apenas uma luz distante e se sentiu irresistivelmente atraído por ela. Então, entrou ali com passos lentos e andou em sua direção. 
 
(Laura Bergallo, A criatura. Edições SM, 2005, pp. 100-101)

Resumo de Conto

Resumo Dos Contos

  • A CARTOMANTE - Machado de Assis
A cartomante é a história de Vilela,Camilo e Rita envolvidos em um triângulo amoroso mais a cartomante que pode ser considerada outra personagem devido a sua grande influência no conto. A historia começa numa sexta-feira de novembro de 1869 com um dialogo entre Camilo e Rita. Camilo nega-se veementemente a acreditar na cartomante e sempre desaconselha Rita de maneira jocosa. A cartomante está caracterizada neste conto como uma charlatã, destas que falam tudo o que serve para todo mundo. É um personagem sinistro, que apesar não ter nem o seu nome revelado (característica machadiana), destaca-se como um personagem que ludibria os personagens principais. Rita crê que a cartomante pode resolver todos os seus problemas e angústias. Camilo já no fim do conto, quando está prestes a ter desmascarado seu caso com Rita, no ápice de seu desespero, recorre a esta mesma cartomante, que por sua vez o ilude da mesma forma como ilude todos os seus clientes, inclusive Rita. A mulher usa de frases de efeito e metáforas a fim de parecer sábia e dona do destino de Camilo, este que sai de lá confiante em suas palavras e ao chegar no apartamento de Vilela encontra Rita morta e é morto a queima roupa pelo amigo de infância, que já está sabendo da traiçao da esposa e o esperava de arma em punho.

Resumo de Conto

"O Espelho" - Resumo do conto de Machado de Assis


Jacobina é um homem de 45 anos e de origem humilde, que conseguiu subir na vida por conta de uma nomeação a um posto militar. Certo dia estava com mais quatro amigos em uma casa debatendo sobre a alma, o universo e outros assuntos. Jacobina, porém, mantinha-se calado e parecia não estar muito interessado no assunto. Quando um dos presentes exige que ele dê sua opinião, Jacobina diz que irá contar um episódio de sua vida. Ele pretendia defender sua teoria de que cada pessoa possui duas almas: uma exterior e outra interior.

Aos 25 anos, Jacobina foi nomeado Alferes da Guarda Nacional, o que lhe garantiu uma mudança significativa de status. Sua família passou a elogiá-lo e a se orgulhar dele, e agora era o "Sr. Alferes". Um dia sua tia Marcolina o chama para ir até o sítio onde ela morava. Por conta do status de seu sobrinho, ela lhe oferece um grande espelho, proveniente da Família Real Portuguesa e melhor mobília da casa, e o coloca no quarto destinado a Jacobina. A partir de então tudo mudou em sua vida. A percepção que tinha de si mesmo passou a ser aquela que outros tinham dele, e a pessoa que Jacobina era não mais existia.

Pouco tempo depois de chegar ao sítio, Marcolina saiu de viagem. Aproveitando a ausência dela, os escravos fugiram e Jacobina viu-se sozinho no sítio. Assim, passou os dias perdido nas sombras da solidão e angustiado por ter perdido a sua "alma exterior", fruto da imagem que os outros faziam dele. Em certo momento ele decide olhar o espelho e percebe que a imagem ali refletida estava corrompida e difusa, assim como a imagem que ele fazia de si mesmo na ausência dos outros.

Não conseguindo enxergar a si mesmo com nitidez, Jacobina resolve vestir sua farda e olhar-se no espelho. Dessa vez a imagem refletida era nítida e com clareza de detalhes e contornos. Recuperando, assim, a "alma exterior" que preenchia sua "alma interior", Jacobina conseguiu evitar a solidão nos dias que se passaram.

Terminado o relato de sua história, Jacobina vai embora e deixa seus amigos em um silêncio reflexivo.

Conto

Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade

Nós somos um terrível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do Texas. O ano é 1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há muitas mortes. Temos remorsos. Por isto bebemos.
A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com despeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. O mexicano aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso coração se confrange. Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção para Alonso, cão mexicano.
Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais uma pequena bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos. Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. A população nos olha. Sabe que somos um terrível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre Alonso.
Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos olhando o teto, fumando. Suspiramos. Temos remorsos.
Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de rotina em nossos revólveres. Descemos.
A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da população fitos em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Ah, este vento! Este vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, de costas para o sol nascente?
No fim da Rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.
Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.
Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. A filha mais velha se tornará prostituta. O filho menor ladrão.
Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não se devia nos ter dado suas bofetadas. Agora está aterrorizado. Seus dentes estragados chocalharam. Que coisa triste.
Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre. Mas não sacamos. É o mexicano que saca. Vemos a arma na sua mão, ouvimos o disparo, a bala voa para o nosso peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos muita dor e tombamos.
Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.
Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.
 

No Retiro da Figueira - Conto de Moacyr Scliar



Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranquilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
         Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinqüenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
         Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
         Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
         Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.
         Naquela semana descobri que o prospecto tinha sido enviado apenas a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo, só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de futuros moradores – e viu nisso mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava achando tudo muito bom. Bom demais.
         Mudamo-nos. A vida lá era realmente um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã começavam seu afinado concerto. Os pôneis eram mansos, as aléias ensaibradas estavam sempre limpas. A brisa agitava as árvores do parque – cento e doze, bem como dizia o prospecto. Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem – sempre gentis, sempre sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada: organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista dos parentes e amigos dos moradores – para qualquer emergência, explicou, com um sorriso tranqüilizador. O primeiro mês decorreu – tal como prometido no prospecto – num clima de sonho. De sonho, mesmo.
         Uma manhã de domingo, muito cedo – lembro-me que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar – soou a sirene de alarme. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados – um pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão de festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
         O chefe dos guardas estava lá, ladeado por seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois, sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia, decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
         – Afinal – disse, em tom de gracejo – está um belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
          Era mesmo um homem muito simpático. Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
         Contrariados ficaram alguns no dia seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. 





Sempre sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que infelizmente não poderíamos sair – os marginais continuavam nos matos, soltos. Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado cirurgião o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
         – E vocês, por que não nos acompanham? – perguntou o cirurgião.
          – E quem vai cuidar da família de vocês? – disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo.
          Ficamos retidos naquele dia e no seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas nós os víamos e reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
          Passávamos o tempo jogando cartas, passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada daquilo.
          Foi no quarto dia que o avião desceu no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
          Um homem desceu e entregou uma maleta ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós – amedrontado, pareceu-me – e saiu pelo portão da entrada, quase correndo.
          O chefe dos guardas fez sinal para que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se fechou, o avião decolou e sumiu.
         Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais. 

Fonte parcial: Flávio Garcia, Publicações Dialogarts

Conto



O Tesouro no Quintal

Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era bastante difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar nosso orçamento doméstico ou de, pelo menos, diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a ideia da horta.

Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente frequentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo, pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.

Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros. Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento – e o mais importante, sem custo.

Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.
Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma família de agricultores e gostava de plantar.

Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:

– Isso é coisa para o Antônio.

Antônio era o irmão do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente, de modo que fiquei em dúvida: como convencê-lo a fazer o trabalho?

– Deixa comigo – disse Pedro, que se considerava muito esperto. – Eu sei como convencer o cara.

E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e sabia contar histórias – inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a capinar o pátio.

Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor, séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que a arca com jóias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar, que podia ser o pátio de nossa casa.

– O tesouro será a nossa salvação – concluiu Pedro , entusiasmado.

Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre lendo – era o maior frequentador da biblioteca do colégio.

– Quem sabe procuramos esse tesouro? – perguntou ele.

Era exatamente o que Pedro queria ouvir.

– Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada... Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho, cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.

– Ele se ofereceu para fazer o trabalho – disse Pedro, dando de ombros.

Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal. Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento, escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o tesouro.

Conto de Moacyr Scliar