Convenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dois indivíduos não parentes é coisa mui rara —
talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não
achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de
estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas.
Na família as semelhanças são naturais; e isso que fazia pasmar ao bom Montaigne não traz o menor espanto ao mais soez dos homens. Os
Ausos, povo antigo, cujas mulheres eram comuns, tinham um processo
sumário para restituir os filhos aos pais: era a semelhança que, ao cabo
de três meses, apresentasse o menino com algum dos cidadãos. Vá por
conta de Heródoto. A natureza era assim um tabelião muito mais seguro.
Mas que entre dois indivíduos de família e casta diferentes (a não serem
os Drômios e os
Menecmas dos poetas) a igualdade das feições, da estatura, da fala, de
tudo, seja tal que se não possam distinguir um do outro, é caso para ser
posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um
papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro.
***
Era uma vez um faraó, cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias —
mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr. Teve notícia de que existia em
certo lugar do Egito um homem tão parecido com ele que era difícil
discriminá-los. A princípio ouviu a notícia com indiferença, mas, depois
de uma grande melancolia que teve, achaque dos últimos tempos,
lembrou-se de deputar três homens que fossem procurar esse milagre e
trazê-lo ao paço.
— Dêem-lhe o que pedir; se tiver
dívidas, quero que as paguem; se amar alguma mulher, que a traga
consigo. O essencial é que esteja cá e depressa, ou eu mando executar os
três.
A corte respirou jubilosa. Após vinte anos de
governo, era a primeira ameaça de morte que saía da real boca. Toda ela
aplaudiu a pena; alguns ousaram propor uma formalidade simbólica — que,
antes de executar os três emissários, se lhes cortassem os pés para
significar a pouca diligência empregada em cumprir os recados do faraó.
Este, porém, sorriu de um modo mui particular.
Não
tardou que os emissários tornassem a Mênfis com o menecma do rei. Era um
pobre escriba, por nome Bachtan, sem pais, nem mulher, nem filhos, nem
dívidas, nem concubinas. A cidade e a corte ficaram alvoroçadas ao ver
entrar o homem, que era a própria figura do faraó. Juntos, só se podiam
reconhecer pelos vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade e
grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre, que as supria. Eram mais
que dois homens parecidos; eram dois exemplares de uma só pessoa; eles
mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade.
Pha-Nohr aposentou o escriba em uma câmara pegada à sua, dizendo que era
para um trabalho de interesse público; e ninguém mais o viu durante
dois meses.
No fim desse tempo, Pha-Nohr, que instruíra o
escriba em todas as matérias da administração, declarou-lhe uma noite
que ia pô-lo no trono do Egito por algum tempo, meses ou anos. Bachtan
ficou sem entender nada.
— Não entendes, escriba? O
escriba agora sou eu. Tu és faraó. Fica aí com o meu nome, o meu poder e
a minha figura. Não descobrirás a ninguém o segredo desta troca. Vou a
negócios do Estado.
— Mas, senhor...
— Reinas ou morres.
Antes
reinar. Bachtan obedeceu à ordem, mas suplicou ao rei que a demora não
fosse muita; faria justiça, mas não tinha gosto ao poder, menos ainda
nascera para governar o Egito. Trocaram de aposentos. O escriba rolou
durante a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura
Cleópatra. De manhã, segundo o ajustado, foi o rei despedido com as
vestes do escriba, dando-lhe o escriba, que fazia de faraó, algum
dinheiro e muitas pedras preciosas. Dez guardas do paço acompanharam o
ex-faraó até os subúrbios de uma cidade distante.
— Viva a vida! exclamou este, apenas perdeu de vista os soldados. Santo nome de Ísis e de Osíris! Viva a vida e a liberdade!
Ninguém,
exceto o vento bochorno do Egito, ouviu essas primeiras palavras ditas
por ele a todo o universo. O vento foi andando indiferente; mas o
leitor, que não é vento, pede explicação delas. Quando menos, supõe que
este homem é doido. Tal era também a opinião de alguns doutores; mas,
graças ao regime especialista da terra, outros queriam que o mal dele
viesse do estômago, outros do ventre, outros do coração. Que mal? Uma
coisa esquisita. Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com vinte e
dois anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda a
gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dois
anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às
pessoas, sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas,
que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos.
Já
sabemos que foi ao sair de uma daquelas crises que ele entregou o Egito
ao escriba. A causa, porém, deste ato inexplicável é a mesma da
singular troca de gênio. Pha-Nohr persuadira-se de que não podia
conhecer o caráter nem o coração dos homens, através da linguagem
curial, ataviada naturalmente, e que lhe parecia oblíqua, dúbia, sem
vida própria nem contrastes. Vá que lhe não dissessem coisas rudes, nem
ainda as verdades inteiras; mas, por que lhe não mostrariam a alma toda,
menos esses desvãos secretos, que há em toda a casa? Desde que isto se
lhe meteu em cabeça, caiu na ruim tristeza e longas hipocondrias; e, se
lhe não aparece o menecma que pôs no trono, provavelmente morreria de
desespero.
Agora tinha ímpetos de voar, de correr toda
aquela abóbada de estanho que lá ficava acima dele, ou então ir
conversar com os crocodilos, trepar aos hipopótamos, disputar as
serpentes aos íbis. Pelo boi Ápis! pensava ele andando e gesticulando,
ruim ofício era o meu. Cá levo agora a minha boa alegria e não a dou a
troco de nada, nem do Egito nem de Babilônia.
***
— Charmion, quem será aquele homem que vem tão alegre? perguntou um tecelão, jantando à porta de casa com a mulher.
Charmion
voltou os olhos cheios de mistérios do Nilo para o lado que o marido
indicava. Pha-Nohr, logo que os viu, correu para eles. Era à entrada da
cidade; podia ir buscar pousada e comida. Mas tão ansioso estava por
sentir que não era rei e meter a mão nos corações e nos caracteres, que
não hesitou em pedir-lhes algum bocado para matar a fome.
—
Sou um pobre escriba, disse ele. Trago uma caixa de pedras preciosas,
que me deu o faraó por achar que era parecido com ele; mas pedras não se
comem.
— Comerás do nosso peixe e beberás do nosso vinho, disse-lhe o tecelão.
O
vinho era ruim; o peixe fora mal crestado ao sol; mas para ele valiam
mais que os banquetes de Mênfis, era o primeiro jantar da liberdade.
Expandia-se o ex-faraó; ria, falava, interrogava, queria saber isto e
aquilo, batia no ombro ao tecelão, e este ria-se também e contava-lhe
tudo.
— A cidade é um covil de sacripantes; mais ruins
que eles só os meus vizinhos aqui da entrada. Contarei a história de um
ou dois e bastará para conhecer o resto.
Contou umas
coisas juntamente ridículas e execráveis, que o hóspede ouviu
aborrecido. Este, para desanojar-se, olhou para Charmion e notou que ela
pouco mais fazia que fitá-lo com os seus grandes olhos cheios de
mistérios do Nilo. Não amara a outra mulher; esta reduziu os seus
quarenta e dois anos a vinte e cinco, ao passo que o tecelão prosseguia
em dizer a má casta de vizinhos que a fortuna lhe dera. Uns perversos! e
os que não eram perversos eram asnos, como um tal Phtataghuruh que...
“Que poder misterioso fez nascer tão linda criatura entre mecânicos?” dizia Pha-Nohr consigo.
Caiu
a tarde. Pha-Nohr agradeceu o obséquio e quis ir-se embora; mas o
tecelão não consentiu em deixá-lo; passaria ali a noite. Deu-lhe um bom
aposento, ainda que pobre. Charmion foi adereçá-lo com as melhores
coisas que tinha, deitando-lhe sobre a cama uma bonita colcha bordada — daquelas famosas colchas do Egito citadas por Salomão — e encheu-lhe o ar de aromas finíssimos. Era pobre, mas gostava do luxo.
Pha-Nohr
deitou-se pensando nela. Era virtuoso; parecia-lhe que estava pagando
mal os obséquios do marido e sacudia de si a imagem da moça. Os olhos,
porém, ficavam; viu-os na escuridão, fitos nele, como dois fachos
noturnos, e ouviu-lhe também a voz terna e súplice. Saltou da cama, os
olhos desapareceram, mas a voz continuava, e, coisa extraordinária,
intercalada com a do marido. Não podiam estar longe; colou o ouvido à
parede. Ouviu que o tecelão propunha à mulher ficarem com a caixa das
pedras preciosas do hóspede, indo buscá-la ao quarto; fariam depois
alarido e diriam que eram ladrões. Charmion opunha-se; ele teimava, ela
suplicava...
Pha-Nohr ficou embasbacado. Quem diria que o
bom tecelão, tão obsequioso?... Não dormiu o resto da noite; gastou-a a
andar e a agitar-se para que o homem lá não fosse. De manhã, dispôs-se a
andar. O tecelão quis retê-lo, pediu-lhe um dia mais, ou dois, algumas
horas; não alcançou nada. Charmion não ajudou o marido; trazia, porém,
os mesmos olhos da véspera, fitos no hóspede, teimosos e enigmáticos.
Pha-Nohr deu-lhe em lembrança uns brincos de cristal e um bracelete de
ouro.
— Até um dia! murmurou-lhe ela ao ouvido.
Pha-Nohr
entrou na cidade, achou pousada, deixou as suas coisas a bom recado e
saiu para a rua. Morria por andar à toa, desconhecido, misturado à outra
gente, falar e ouvir a todos, com franqueza, sem os atilhos do
formalismo nem as composturas do paço. Toda a cidade estava em alvoroço,
por causa da grande festa anual de Ísis. Grupos na rua, ou às portas,
mulheres, homens, crianças, muito riso, muita conversa, uma algazarra de
todos os diabos. Pha-Nohr ia a toda parte; foi ver aparelhar os barcos,
entrou nos mercados, interrogando a todos. A linguagem era naturalmente
rude — às vezes obscena. No meio do tumulto recebeu alguns encontrões.
Eram os primeiros, e mais lhe doeu a dignidade que a pessoa. Parece que
chegou a desandar para casa; mas riu-se logo do melindre e tornou à
multidão.
Na primeira rua em que entrou, viu duas
mulheres que brigavam, agarradas uma à outra, com palavras e murros.
Eram robustas e descaradas. Em volta, a gente fazia círculo, e
animava-as, como se pratica ainda hoje com os cães. Pha-Nohr não pôde
sofrer o espetáculo; primeiro, quis sair dali; mas tal pena teve das
duas criaturas, que rompeu a multidão, penetrou no espaço em que elas
estavam e separou-as. Resistiram; ele, não menos robusto, meteu-se de
permeio. Então elas, vendo que não podiam ir uma à outra, despejaram
nele a raiva; Pha-Nohr afasta-se, atravessa a multidão, elas
perseguem-no, entre a risota pública, ele corre, elas correm, e, a
pedrada e nome cru, o acompanham até longe. Uma das pedras feriu-lhe o
pescoço.
“Vou-me daqui, pensou ele, entrando em casa. Em curando a ferida, embarco. Parece, na verdade, uma cidade de sacripantes.”
Nisto
ouviu vozes na rua, e daí a pouco entrava-lhe em casa um magistrado
acompanhado das duas mulheres e de umas vinte pessoas. As mulheres
queixavam-se de que esse homem investira contra elas. As vinte pessoas
juraram a mesma coisa. O magistrado ouviu a explicação de Pha-Nohr; e,
dizendo este que a sua melhor defesa era a ferida que trazia no pescoço,
retorquiu-lhe o magistrado que as duas agravadas naturalmente haviam de
defender-se, e multou-o. Pha-Nohr, esquecendo a abdicação temporária,
gritou que lhe prendessem o magistrado.
— Outra multa, respondeu este gravemente; e o ferido não teve mais que pagar para se não descobrir.
Estava
em casa, triste e acabrunhado, quando viu entrar, daí a dois dias, a
bela Charmion debulhada em lágrimas. Sabendo da aventura, desamparou
tudo, casa e marido, para vir tratar dele. Doía-lhe muito? Queria que
ela lhe bebesse o sangue da ferida, como o melhor vinho do Egito e do
mundo? Trazia um pacote com os objetos de uso pessoal.
— Teu marido? perguntou Pha-Nohr.
— Meu marido és tu!
Pha-Nohr
quis replicar; mas os olhos da moça encerravam, mais que nunca, todos
os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano. Dissera
ao marido que ia com uma família amiga à festa de Ísis, e foi assim que
saiu de casa.
— Olha, concluiu, para mais captar-lhe a
confiança, aqui trouxe o meu par ae crótalos, com que uso acompanhar as
danças e as flautas. Os barcos saem amanhã. Alugarás um e iremos, não a
Busíris, mas ao lugar mais ermo e áspero, que será para mim o seio da
própria Ísis divina.
Cegueira do amor, em vão Pha-Nohr
quis recuar e dissuadi-la. Tudo ficou ajustado. Como precisassem
dinheiro, saiu ele a vender duas pedras preciosas. Nunca soubera o valor
de tais coisas; umas foram-lhe dadas, outras foram-lhe compradas pelos
seus mordomos. Contudo, tal foi o preço que lhe ofereceu por elas o
primeiro comprador, que ele voltou as costas, por mais que este o
chamasse para fazer negócio. Chegou-se a outro e contou-lhe o que se
dera com o primeiro.
— Como se há de impedir que os velhacos abusem da boa-fé dos homens de bem? disse este com voz melíflua.
E, depois de examinar as pedras, declarou que eram boas, e perguntou se o dono lhes tinha alguma afeição particular.
—
Para mim, acrescentou, é fora de dúvida que a afeição que se tem a um
objeto torna-o mais vendável. Não me pergunte a razão; é um mistério.
— Não tenho a estas nenhuma afeição particular, acudiu Pha-Nohr.
— Bem, deixe-me avaliá-las.
Calculou
baixinho, olhando para o ar, e acabou oferecendo metade do valor das
pedras. Era tão superior esta segunda oferta à primeira, que Pha-Nohr
aceitou-a com grandes alegrias. Comprou um barco, de boa acácia,
calafetado de fresco, e voltou à pousada, onde Charmion lhe ouviu toda a
história.
— A consciência daquele homem, concluiu Pha-Nohr, é em si mesma uma rara pedra preciosa.
— Não digas isso, meu divino sol. As pedras valiam o dobro.
Pha-Nohr,
indignado, quis ir ter com o homem; mas a formosa Charmion reteve-o,
era tarde e inútil. Tinham de embarcar na manhã seguinte. Veio a manhã,
embarcaram, e no meio de tantos barcos que iam a Busíris puderam eles
escapar-se e foram dar a outra cidade distante, onde acharam casa
estreita e graciosa, um ninho de amor.
— Viveremos aqui até à morte, disse-lhe a bela Charmion.
***
Já
não era a pobre namorada sem adornos; podia agora desbancar as ricas
donas de Mênfis. Jóias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de
bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do
Egito, outras da Etiópia; mas a melhor jóia de todas, a melhor alcatifa,
o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr.
Não
faltaram também amigos nem amigas, por mais que quisessem viver
reclusos. Entre os homens, havia dois mais particularmente aceitos a
ambos, um velho letrado e um rapaz que andara por Babilônia e outras
partes. Na conversação, era natural que Charmion e as amigas ouvissem
com prazer as narrativas do moço. Pha-Nohr deleitava-se com as palestras
do letrado.
Desde longos anos que este compunha um
livro sobre as origens do Nilo; e, conquanto ninguém o tivesse lido, a
opinião geral é que era admirável. Pha-Nohr quis ter a glória de
ouvir-lhe algum trecho; o letrado levou-o à casa dele, um dia, aos
primeiros raios do sol. Abria o livro por uma longa dissertação sobre a
origem da terra e do céu; depois vinha outra sobre a origem das estações
e dos ventos; outra sobre a origem dos ritos, dos oráculos e do
sacerdócio. No fim de três horas, pararam, comeram alguma coisa e
entraram na segunda parte, que tratava da origem da vida e da morte,
matéria de tanta ponderação, que não acabou mais, porque a noite os
tomou em meio. Pha-Nohr levantou-se desesperado.
—
Amanhã continuaremos, disse o letrado; acabada esta parte, trato logo da
origem dos homens, da origem dos reinos, da origem do Egito, da origem
dos faraós, da minha própria origem, da origem das origens, e entramos
na matéria particular do livro, que são as origens do Nilo,
antecedendo-as, porém, das origens de todos os rios do universo. Mas que
lhe parece o que li?
Pha-Nohr não pôde responder; saiu
furioso. Na rua teve uma vertigem e caiu. Quando voltou a si, a lua
clareava o caminho, ergueu-se a custo e foi para casa.
— Maroto! serpente! dizia ele. Se eu fosse rei, não me aborrecias mais de meia hora. Vã liberdade, que me condenas à escravidão!
E
assim pensando, ia cheio de saudades de Mênfis, do poder que emprestara
ao escriba e até dos homens que lhe falavam tremendo e aos quais
fugira. Trocara tudo por nada... Aqui emendou-se. Charmion valia por
tudo. Já lá iam meses que viviam juntos; os indiscretos é que lhe
empanavam a felicidade. Murmurações de mulheres, disputas de homens eram
realmente matéria estranha ao amor de ambos. Construiu novo plano de
vida; deixariam aquela cidade, onde não podiam viver para si. Iriam para
algum lugar pobre e de pouca gente. Para que luxo externo, amigos,
conversações frívolas? E ele cantarolava, andando: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...”
Chegou
à casa, correu ao aposento comum, para enxugar as lágrimas à bela
Charmion. Não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as
jóias, túnicas, espelhos, muitas outras coisas de valia. Não achou
sequer o moço viajante, que provavelmente, à força de falar de
Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos...
Pha-Nohr
chorou de raiva e de amor. Não dormiu; no dia seguinte indagou, mas
ninguém sabia de nada. Vendeu os poucos móveis e tapetes que lhe
ficaram, e foi para uma cidadezinha próxima, no mesmo distrito. Levava
esperanças de encontrá-la. Estava abatido e lúgubre. Para ocupar o tempo
e sarar do abalo, meteu-se a aprendiz de embalsamador. A morte me
ajudará a suportar a vida, disse ele.
A casa era das
mais célebres. Não embalsamava só os cadáveres das pessoas ricas, mas
também os das menos abastadas e até da gente pobre. Como os preços de
segunda e terceira classes eram os mesmos de outras partes, muitas
famílias mandavam para ali os seus cadáveres, para que os embalsamassem
com os das pessoas nobres. Pha-Nohr começou pela gente ínfima, cujo
processo de embalsamamento era mais sumário. Notou logo que ele e os
companheiros de classe eram vistos com desdém pelos embalsamadores da
segunda classe; estes chegavam-se muito aos da primeira, mas os da
primeira não faziam caso de uns nem de outros. Não se mortificou com
isso. Sacar ou não os intestinos do cadáver, ingerir-lhe óleo de cedro
ou vinho de palma, mirra e canela, era diferença de operação e de preço.
Outra coisa o mortificou deveras.
Tinha ido ali buscar
uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas.
Certamente havia respeito, quando entrava uma encomenda; o cadáver era
recebido com muitas atenções, gestos graves, caras lúgubres. Logo,
porém, que os parentes o deixavam, recomeçavam as alegrias. As mulheres,
se faleciam moças e bonitas, eram longamente vistas e admiradas por
todos. A biografia dos mortos conhecidos era feita ali mesmo, lembrando
este um caso, aquele outro. Operavam os corpos, gracejando, falando cada
um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se
cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a
piedade e a sensibilidade.
“Talvez eu mesmo acabe assim”, pensou ele.
Deixou
o ofício, depois de esperar algum tempo a ver se entrava o cadáver da
bela Charmion. Exerceu outros, foi barbeiro, bateleiro, caçador de aves
aquáticas. Cansado, exausto, aborrecido, apertaram-lhe as saudades do
trono; resolveu tornar a Mênfis e ocupá-lo.
Toda a
cidade, logo que o viu, clamou que era chegado o escriba parecido com o
faraó, que ali estivera tempos atrás; e faziam-se grupos na rua e uma
grande multidão o seguiu até ao paço.
— Muito parecido! exclamavam de um lado e de outro.
— Sim? perguntava Pha-Nohr, sorrindo.
— A única diferença, explicou-lhe um velho, é que o faraó está muito gordo.
Pha-Nohr
estremeceu. Correu-lhe um frio pela espinha. Muito gordo? Era então
impossível a permuta das pessoas. Deteve-se alguns instantes; mas
acudiu-lhe logo ir assim mesmo ao paço, e, destronando o escriba,
descobrir o segredo. Para que encobri-lo mais?
Entrou; a
corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era
impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos
corpos; mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan
perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e
declarou-lhe que o trono.
— Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado.
Bachtan
riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a
gargalhada universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a
corte continuou a rir. Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse
homem sedicioso era um perigo para o Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo
preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte, cumpriu-se a
sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo,
rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação:
— Viva Pha-Nohr!
E Bachtan, sorrindo, agradeceu.
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