Deu-me agora uma vontade enorme de indagar o que é na realidade e como se faz uma crônica filosófica.
Estou acompanhado aqui dos mestres brasileiros da crônica. Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Porto e outros. Estes me ensinam que escrever crônica é inventar um texto literário que parta de um evento cotidiano, onde o narrador faça quase de repórter e relate o circunstancial. Também ensinam que a crônica literária tem um rosto que se assemelha ao jornalismo mas... que não é inteiramente uma escrita jornalística, exatamente porque para ser texto literário de caráter artístico tem que ter a "literariedade" ou a "literaturnost", de que falavam os formmalistas russos, como ingrediente diferencial em relação aos outros gêneros.
Sublinha-se entretanto o diferente ponto de partida para cada autor. Para Rubem Braga, por exemplo, a crônica será o instante. Para Fernando Sabino será a narrativa curta que normalmente explora o lado surpreendente e humorístico da vida cotidiana e que outras vezes prefere assumir aquele lado romântico da vida que faz o cerne do romance.
Seja como for, o importante agora é destacar que na crônica a realidade é ficcionalizada. E por esse motivo, nada na escrita vai ser confundido com o rosto real das coisas. A crônica é portanto uma escrita ficcional. Mais do que isso: no dizer de Vinicius, é uma conversa meio fiada que a circunstância vai oferecendo ao escritor.
Bom, mas meu propósito era encarar a crônica filosófica. E a primeira pergunta é indagar se alguma coisa muda em relação à crônica literária. Digo isto porque tenho em minha biblioteca o texto “Le moi et son destin” (O Eu e seu destino) do filósofo francês Louis Lavelle, que é um dos nomes cimeiros do grupo "Philosophie de l’esprit" a que pertenceram René Le Senne, Jankélevitch, Nicolas Berdiaeff e outros. E esse livro é, na apresentação que dele faz o autor, a reunião de dezesseis crônicas filosóficas antes publicadas em "Le Temps". A origem dessas crônicas filosóficas tem relação com o tipo de leitura que casualmente seu autor fazia. Essas crônicas eram reflexões pessoais e o autor nada mais pretendia do que associar seus leitores a estas mesmas reflexões de cunho filosófico e metafísico. Lavelle partia do princípio de que os indivíduos são tocados normalmente por aquilo que os separa.
É claro que em filosofia também há cotidiano. Um quotidiano de natureza íntima. As emoções, as dúvidas, os pensamentos. Toda a trajetória da alma e a sua exuberante história. Há no homem um eu que é o centro de atribuição de atos e de responsabilidade. Perceber portanto que há no homem algo fundamental do qual tudo parte, é um ato de inteligência perceptiva. E portanto toda a atitude filosófica deve necessariamente depender do modo como cada um de nós apreende o “fato primitivo”. Dito por outras palavras, tudo depende do modo como cada um de nós entra em contato consigo mesmo e com o universo que vivemos. O “fato primitivo” é por isso a descoberta da existência solidária do universo e do eu.
Frente a este universo interior é possível também acompanhar a fenomenologia do espírito e relatar circunstâncias. Um pouco mais seriamente, mas é possível. É possível relatar experiências metafísicas. Experiências do mundo da inteligência e simpatias e antipatias. É possível escrever um diário metafísico. Um diário onde a crônica se torna mais sutil, mais íntima e menos humorística.
Quando falamos de crônica filosófica e metafísica estamos pensando na maneira de relatar, comentar e apresentar a história da alma, das ansiedades do eu, a história feliz e infeliz perfilhada pelo eu, a história do indivíduo na sua aventura no mundo, na sua experiência de angústia, na sua profunda desilusão perante a existência acossada pelo fantasma do nada, como sublinhou o existencialismo sartreano.
Mas pode haver uma crônica nobre, suspensa nos altos céus da liberdade, situada entre o dever e a graça, uma crônica sobre os meandros da má consciência, sobre as duas liberdades, a do mal e a do bem, e sobre a liberdade pessoal.
Finalmente, podemos ganhar a grande matéria da crônica filosófica tentando nos instalar na realidade do instante, que melhor do que qualquer outro momento, nos dá o espírito da vida, como Rubem Braga já o assinalou para a Literatura.
Além da realidade do instante, a crônica filosófica tenta registrar o futuro e o passado, o eterno retorno, com Heráclito, Nietzsche, Raul Proença ou com qualquer outro, para finalizar no clássico circuito do tempo e da eternidade.
E se não há idéia que tenha surgido no nosso espírito pela primeira vez, porque todas as idéias são potências da alma que já se exerceram no passado, então teremos aqui encontrado a matéria prima da crônica, que são as idéias literalizadas e comunicadas, a fonte básica da comunicação entre autor e leitor. O problema do tempo é nosso objeto permanente. O objeto único de nossa reflexão e de nossa ansiedade É no tempo que nós nascemos e que nós morreremos. É no tempo que vivemos. E no tempo escrevemos e lemos. É o tempo que condiciona a eventualidade de nossa crônica.
João Ferreira
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