terça-feira, 28 de abril de 2015

Narrativa de Aventura - exemplo

Robinson Crusoé
Celebrei o vigésimo sétimo aniversário da minha vida na
ilha de modo especial. Tinha muito a agradecer a Deus, agora mais do que antes, já que  os três últimos anos foram particularmente agradáveis ao lado de Sexta-Feira. Tinha também o estranho pressentimento de que este seria o último aniversário comemorado na ilha.
O barco estava guardado, em lugar seco e protegido,
esperando a época das chuvas terminar para empreender a viagem até o continente.
Enquanto aguardava tempo bom para lançar-me ao mar,
eu preparava todos os detalhes necessários ao sucesso da
jornada: armazenar milho, fazer pão, secar carne ao sol,
confeccionar moringas de barro para transportar água... Sexta-Feira andava pela praia, à procura de tartarugas. Voltou correndo, apavorado.
— Patrão, patrão! Três canoas estão chegando com muitos inimigos! Já estão muito perto...
Também me assustei. Não contava com o inesperado: os selvagens não vinham à ilha no tempo das chuvas. Espiei-os do alto da  paliçada com os binóculos. Desembarcavam muito próximos do meu ―castelo‖, logo depois do ribeirão. O perigo nunca fora tão iminente...
— Não são gente do seu povo, Sexta-Feira?
— Não, patrão. São inimigos. Eu vi direitinho...
— Assim de tão longe? Como é que você sabe?
— Eu sei. São todos inimigos. Talvez, o objetivo de todos eles seja me pegar!
Acalmei-o. Claro que não tinham vindo até  a ilha por causa dele! Já se passara muitos anos... Mas, de qualquer forma, o perigo era grande. Estavam tão próximos que poderiam descobrir-nos facilmente. Se quiséssemos ter alguma chance de sobrevivência, precisávamos
atacá-los primeiro, quando não esperassem. Era fundamental fazer da surpresa nosso terceiro
guerreiro!
— Você pode lutar? — perguntei ao meu
companheiro.
— Sexta-Feira pode guerrear sim, patrão!
Basta dizer o que devo fazer...
Carreguei duas espingardas e quatro mosquetes  com chumbo grosso para dar a impressão de muitas balas. E preparei ainda duas pistolas. Reparti as armas de fogo com Sexta-Feira e rumamos para o acampamento dos antropófagos.
Eu levava também a espada, presa à cintura, e meu companheiro, seu inseparável machado. Protegidos pelas árvores, chegamos a menos de quarenta metros do inimigo. Na hora, não pude contá-los todos. Posteriormente, somando os mortos e os fugitivos,
descobri que eram vinte e um. As chamas da fogueira já ardiam, como línguas vorazes à espera da gordura humana, que pingava de membros e partes cortadas para alimentar sua gula.
Eu relutava em atacá-los. Estava mesmo disposto a aguardar o máximo possível, escondido no meio do bosque. E, se descobrisse que iriam embora sem andar muito pela ilha, deixá-los-ia voltar sem importuná-los.
O grupo todo encontrava-se ocupado em soltar as cordas que prendiam mãos e pés de um prisioneiro. Por fim, desmancharam a roda que ocultava o condenado à morte e o arrastaram para perto do fogo. Meu Deus, o prisioneiro era um homem branco! Não, não iria aguardar os acontecimentos.  Um homem cristão como eu estava prestes a ser devorado por selvagens antropófagos... Na minha ilha. Eu não podia deixar aquela bestialidade prosseguir!
Fiz sinal a Sexta-Feira. Estava pronto? Então que atirasse com a espingarda, que seguisse meu exemplo...
— Agora, Sexta-Feira! — berrei.
Os dois tiros ecoaram simultaneamente. Por um instante, o mundo parou. Horrorizados, os selvagens viram vários dos seus guerreiros caírem sem vida. Não conseguiam compreender de onde vinha a morte. As espingardas, carregadas com chumbo grosso, provocaram um enorme estrago entre os inimigos: cinco caíram mortos, três outros feridos. [...]
O mundo então pareceu vir abaixo: a praia virou um enorme pandemônio. Tínhamos sido descobertos, mas ainda assim os selvagens não se atreviam a atacar-nos. Gritos de guerra e raiva misturavam-se aos
de dor dos feridos.
Corri ao encontro do inimigo, Sexta-Feira seguiu atrás de mim. No meio do caminho, já na areia da praia, paramos para garantir a pontaria do tiro do último mosquete carregado. Mais alguns mortos e feridos caíram ao chão. Os que ainda se mantinham em pé não sabiam se corriam ou se lutavam. Fomos ao seu encontro.
Ao passar pelo homem branco, entreguei-lhe minha pistola: podia precisar dela para defender-se. A luta prosseguia, agora num combate corpo a corpo. Matei mais dois, três, quatro  — não posso precisar quantos — com a espada. [...] Ainda assim, três inimigos conseguiram saltar dentro de um dos barcos e fugiram para o mar. Dois pareciam ilesos; o outro sangrava, estava gravemente ferido. [...]
Corremos para a outra canoa, encalhada na areia da praia. Antes de fazê-la navegar, descobrimos, deitado no seu fundo, mais um prisioneiro amarrado. De repente, a máscara de guerra, em que se transformara o rosto de Sexta-Feira, tornou-se doce e suave ao avistar o velho homem, imóvel no chão do barco.
Sexta-Feira tratou-o com muito cuidado, dedicação e carinho. Soltou o velho, sentou-o, abraçou-o, apoiou sua cabeça contra seu forte peito, enquanto afagava com mão de criança seus cabelos... Sem o saber, Sexta-Feira acabara de salvar da morte o seu próprio pai.
Os fugitivos já iam longe no mar. Era inútil persegui-los.
[...]
 
 
Daniel Defoe. Robinson Crusoé: a conquista do mundo numa ilha.
Adaptação para o português: Werner Zotz. São Paulo: Scipione, 1990. p. 85-9.

Vocabulário:
Antropófago: ser humano que se alimenta de carne humana.
Bestialidade: comportamento que assemelha o homem à besta (animal); brutalidade, estupidez,
Moringa: vaso de barro bojudo e de gargalo estreito usado para acondicionar e conservar fresca e
Mosquete: arma de fogo similar a uma espingarda.
Paliçada: cerca feita com estacas apontadas e fincadas na terra, que serve de barreira defensiva.
Pandemônio: mistura confusa de pessoas ou coisas; confusão.  

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