MINHA GLÓRIA DE CAMPEÃO
NASCI no dia 12 de outubro, aniversário do Gerson, que estava fazendo oito anos. Meu irmão tinha pedido de presente uma surpresa, e surpresa ele teve: nasci em casa, como acontecia naquela época, e minha mãe mandou botar o bebê na cama do Gerson, como presente de aniversário.Quando ele acordou e deu comigo a seu lado, ficou na maior alegria. Foi um custo para se convencer de que eu não era um brinquedo dele, que pudesse ficar carregando pela casa de cá para lá o tempo todo.
Dai o carinho com que ele me tratou a vida toda. Embora o Toninho, que era só dois anos mais velho, sempre tenha sido também muito meu amigo, e fosse o meu companheiro de quarto, o Gerson, pelo fato de já ser para mim um homem com seus dezesseis anos, me despertava uma grande fascinação; eu queria ser como ele quando crescesse.
Diga-se de passagem que, ao completar oito anos, também pedi à minha mãe um bebê. Ela achou muita graça, botando na minha cama um boneco, o que me deixou com muita raiva ao acordar, pois além do mais eu não era menina para ganhar um presente daqueles. Estou contando tudo isto para chegar a um episódio de minha infância que devo ao Gerson, e relacionado a futebol, que sempre foi a sua grande paixão. Até hoje, tantos anos passados, com filhos crescidos e cheio de netos, ainda joga futebol de salão e tem a parede do seu quarto decorada com retratos de jogadores.
Quando garotinho eu ia vê-lo jogar no gol do América, que era o time de nossa devoção — primeiro nos juvenis, depois no time titular, do qual era reserva, apesar de sua pouca idade. Até então, o futebol vinha constituindo para mim uma série de sucessivos fracassos. Para começar, na escola eu sempre ficava por último na escolha dos times que os dois melhores faziam, alternadamente, depois de tirarem par-ou-ímpar para saber quem começava. No dia em que um dos que escolhiam me apontou por distração antes do fim, os já escolhidos protestaram:
— Ah, ele não!
Tinha de me conformar com o fato de ninguém me querer no seu time. Procurava me consolar com a idéia de que me rejeitavam não por jogar mal, mas por ser dos menores. Não podia nem apelar para a ignorância, como fazia o Bolão, um gorducho que mal conseguia correr em campo, mas que ia avisando logo, por ser dono da bola:
— Ou eu jogo, ou ninguém joga.
Não que eu fosse assim tão ruim, dos piores. Conseguia controlar a bola que me passavam (quando passavam) jogando em geral (quando deixavam) na ponta direita, por ser pequenino mas veloz. Conseguia também levá-la de vez em quando à linha de fundo, como fazem os pontas mais famosos. Só que acabava saindo pela linha de fundo com bola e tudo, pois me esquecia de centrar.
Eu era muito distraído, eis o problema. Ficava prestando atenção em coisas que nada tinham com o jogo: um carro que passava na rua, um passarinho pousado na árvore, um avião no céu... De repente era aquela gritaria dos outros, me incentivando:
— Vai nela! Vai nela!
Era comigo? Eu caía das nuvens, procurando ir na bola, mas nem mesmo sabia onde ela estava: quando a descobria, o zagueiro adversário já se havia antecipado, afastando o perigo, enquanto os companheiros reclamavam, pedindo minha substituição. O resultado é que eu era um peso morto nas raras peladas que me deixavam disputar, tanto na escola como no campinho daquele lote vazio perto de casa.
Um dia experimentei jogar de goleiro, e o resultado foi ainda mais desastrado: engoli cinco gols, sendo três contra, feitos por mim mesmo, na hora da confusão (dois de cabeça e um com o traseiro).
TAMANHA era a minha frustração por causa do futebol, que resolvi treinar sozinho, para ver se melhorava o meu rendimento no jogo. Ia para o campinho de pelada quando já não havia ninguém lá, e ficava horas a me distrair com uma bola que meu pai me dera, a meu pedido. (Não me ocorreu apelar, como o Bolão, para o fato de agora também ser dono da bola.)
Tentava, sem resultado, matar na cabeça, controlar no peito ou no joelho, sustentar a bola no ar fazendo embaixada, como via os grandes jogadores fazerem. Conseguia no máximo dois ou três lances e ela rolava logo para longe de mim, resvalava no meu pé e o chute em gol saía espirrado, sem direção. Em geral eu voltava para casa coberto de suor do esforço feito e de desânimo com o resultado obtido.
Entardecia, quando um dia, sentado no tijolo que marcava um dos lados do gol, pensando em desistir, levantei o rosto, sentindo que alguém me observava de longe. Era o Gerson. Ele se aproximou:
— Não é nada disso. Está tudo errado. Vou te ensinar como se faz.
Disse que estava ali havia muito tempo, acompanhando o meu esforço. Pegou a bola e mostrou como eu devia fazer para erguê-la do chão com o pé: uma puxadinha por cima e depois enfiar de leve o bico da chuteira por debaixo. O chute devia ser com o peito do pé e não com a ponta, nas bolas altas; nas rasteiras, com o pé meio de lado:
— Assim, quer ver?
E ele chutava com perfeição, a bola ia direitinho ao gol. Depois
me mostrou como se dava cabeçada: com a testa e não com o alto da
cabeça. Por isso é que eu chegava sempre em casa com ela doendo. E a testa é que ia na bola, não a bola na testa.
Naquele dia e nos que se seguiram me ensinou uma porção de coisas assim, que eu ia aprendendo lentamente, para depois tentar praticar sozinho. E olha que ele jogava era no gol. Não adiantou grande coisa. Na escola eu continuava o último a ser escolhido e me deixavam entrar no time só para fazer número, quando não havia ninguém mais para completá-lo. Cheguei a passar pela humilhação de exigirem que eu jogasse o primeiro tempo num e o segundo tempo noutro, para compensar a desvantagem de me terem como jogador.
Não que este ou aquele já não tivesse percebido em mim algum progresso. Mas haviam decidido que eu era ruim de bola e não mudariam nunca de opinião. Além do mais, eu continuava sem conseguir acompanhar o tempo todo o desenrolar do jogo: qualquer coisa me distraia a atenção.
Houve um dia em que, final de partida, a bola veio rolando até meus pés. Eu estava praticamente sozinho diante do gol e em posição legal, o goleiro já batido, caído ao chão, era só chutar. Em vez disso, pensando que não estava valendo, que o juiz já tinha apitado ou qualquer coisa assim, peguei a bola com a mão, me voltei para os companheiros que, na maior gritaria, insistiam comigo que chutasse, e perguntei ingenuamente:
— Que foi que aconteceu?
Logo o goleiro adversário se aproximou, e me tomou a bola das mãos, dizendo em tom de zombaria:
— Com licença, artilheiro.
Perdemos o jogo por causa disso. Naquele dia voltei para casa chorando.
ACABEI desistindo de jogar e me limitando a ir com o Gerson e o Toninho assistir às grandes partidas. Mas a minha mágoa continuava. Eu me sentia um fracassado na vida, por não dar certo no futebol. Pois foi exatamente no dia 12 de outubro, quando completei oito anos, que se deu a minha reabilitação, de maneira tão fantástica que eu mesmo não acreditaria se me contassem. Como já disse, foi graças ao Gerson, que também fazia anos naquele dia.
Era o jogo de decisão final do Campeonato Mineiro: Atlético contra América. Torcíamos apaixonadamente pelo América, não só por ser o time de nossa predileção mas, com mais razão ainda, porque o próprio Gerson ia jogar de goleiro, em substituição ao famoso Princesa, que estava contundido. Apesar de seus dezesseis anos, e jogando ainda nos juvenis, era muito desenvolvido para a idade, podendo perfeitamente passar por homem feito,
como os demais do primeiro time. A formação do América, segundo o
esquema dois-três-cinco que vigorava na época, era a seguinte:
GERSON
CHICO PRETO NEGRÃO
RAFAEL PIMENTÃO BEZERRA
JAIR JAVERT JORIVÊ JACY JICO LEITE
A linha, como se vê, era toda ela composta de nomes começados com J (inclusive o ponta esquerda, Chico Leite, que por causa disso passou a ser Jico Leite). Quem não acredita, que consulte os jornais da época. O time do Atlético se compunha dos seguintes craques:
KAFUNGA
NARIZ MAURÍCIO
MAURO BRANT CAIEIRA
CHAFIR SAID OIRAM JAIRO CUNHA
Oiram era o grande centro-avante Mário de Castro, cujo pai não admitia que ele fosse jogador de futebol, e por isso figurava com seu primeiro nome de trás para diante. Gerson me reservou uma primeira surpresa: tinha me arranjado um uniforme completo do time do América, para que eu entrasse no campo como mascote.
Só o fato de sair do vestiário em meio aos jogadores de verdade já me enchia de emoção. Sentia-me ainda mais pequenino no meio daqueles homenzões peitudos e de pernas cabeludas que invadiam o campo como uma manada de búfalos, sob os delirantes aplausos da torcida, que lotava completamente o estádio do América. Gerson me conduzia pela mão, quando nos alinhamos para fazer o cumprimento de praxe à assistência. Depois os jogadores se espalharam, batendo bola e fazendo exercícios de aquecimento. Fiquei por ali, ciscando entre um e outro, a viver a minha grande emoção. Mas o meu maior momento de glória ainda estava para chegar.
O juiz convocou os jogadores, que se dispuseram a dar início à partida, colocando-se cada um em seu lugar no campo. Gerson foi para o gol, depois de me deixar em companhia do treinador no banco dos reservas. Foi dada a saída. Logo se viu que iríamos assistir a uma peleja das mais emocionantes. Os ataques se sucediam de lado a lado. O América pressionava e Kafunga, num de seus grandes dias, fazia defesas prodigiosas. Gerson não deixava por menos. Os
contra-ataques do Atlético encontravam no meu irmão uma barreira
intransponível:
— Gerson não está deixando passar nem pensamento! — diziam os reservas, a meu lado, entusiasmados.
Os lances violentos também se sucediam. A todo momento um jogador era substituído por contusão. O primeiro tempo terminou empatado de zero a zero. Logo ao início do segundo tempo, o juiz apitou contra o América um pênalti que nossa torcida reclamava, revoltada, jamais ter existido. Cobrada a penalidade máxima, Gerson não teve como segurar, apesar de conseguir tocar os dedos na bola, numa ponte magistral. Um a zero contra nós.
Por mais que o América reagisse, não conseguia igualar o marcador. Faltavam quinze minutos para o término da partida, quando enfim uma bola cruzada de Javert para a área foi dar na cabeça de Jacy, que emendou de primeira, sem que Kafunga nada pudesse fazer. Um gol de susto, como se costuma dizer. Estava empatada a peleja.
O tempo passando, as duas equipes buscando ferozmente o desempate. Aos cinco minutos do término da partida, houve uma interrupção, não entendi bem por quê, e, pelo jeito, a torcida ainda menos, pois prorrompeu na maior gritaria. Ao reiniciar-se o jogo, a linha americana esboça um perigoso ataque pela direita. De posse da bola, Jico Leite penetra a defesa contrária, mas se choca violentamente com Nariz e rola no chão, contundido, botando sangue pelo nariz.
Pânico nas hostes americanas: todos os reservas já haviam entrado em campo, não sobrara ninguém para substituições, que fazer? Segundo as regras daquele tempo, time nenhum podia jogar desfalcado, sob pena de ser eliminado do campeonato. Disputa interrompida, o jogador machucado é retirado na maca. Gerson vai confabular com o juiz, gesticula, depois vem correndo até o banco dos reservas onde me encontro, em companhia do treinador e do massagista. Fala qualquer coisa ao ouvido do treinador, me apontando, e este se volta para mim, com ar grave:
— Você vai ter de entrar, Fernando. Não tem mais ninguém. Você é a nossa última esperança.
Não vacilei: além do mais, era justamente a ponta direita, minha posição predileta! Pois se o América precisava de mim para completar o time, contassem comigo, era uma questão de honra. Apenas mais cinco minutos — mas futebol, como se sabe, é uma caixa de surpresas. Em cinco minutos tudo pode acontecer. E aconteceu. Mal tive tempo de fazer o aquecimento. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, entrei em campo. A aclamação da assistência foi ensurdecedora —
o que não chegou a me perturbar: tinha de me concentrar na missão que me cabia. Gerson havia me ensinado muito bem o que devia fazer.
Jorivê deu a saída do meio do campo, cumprindo ordem do juiz: atrasou para Pimentão, que adiantou para Jacy. Caieira rouba-lhe a bola, passando para Chafir, que avançou perigosamente, Gerson se preparou para defender, Chico Preto aliviou, pondo para fora num chutão.
Ao contrário do que fazia nas peladas de meninos, eu procurava acompanhar, lance por lance, o desenrolar da disputa, em seus instantes finais. Chafir fez a cobrança da lateral, dando de presente para Negrão, que, sem perda de tempo, acionou Bezerra. Quando eu, estrategicamente colocado no setor direito do gramado, como me competia, já pensava que não daria tempo sequer de intervir numa só jogada, eis que Bezerra faz com que a bola venha rolando até mim.
Depois de dominá-la numa manobra que arrancou aplausos da torcida, e tendo Jacy na cobertura, driblei Nariz, deixando-o estatelado de surpresa, e tabelei com meu companheiro. Este passou ao Jorivê, enquanto eu me deslocava para recebê-la de volta. Então disparei num pique, sob o delírio da assistência, e lá fui eu com minhas perninhas curtas no meio daqueles cavalões, driblei um, outro, deixei para trás a defesa adversária. E me vi frente a frente com o goleiro. Kafunga abria os braços gigantescos, achei que queria me pegar e não à bola. Fiz que chutava, como se fosse encobri-lo, ele pulou. Então passei com bola
e tudo por entre as pernas dele e marquei o gol da vitória.
Foi aquela ovação, a torcida delirava. Logo em seguida soou o apito final e meus companheiros de equipe correram para me abraçar e carregar em triunfo. O que para eles era fácil, dado o meu tamaninho. E assim demos a volta olímpica, sagrados campeões.
resumo pfv
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