quarta-feira, 10 de abril de 2013

Rir é o melhor remédio

Um ladrão foi roubar umas galinhas justamente na casa de Rui Barbosa. com toda aquela eloquência que lhe era peculiar. Rui Barbosa falou:

 - Não é pelo bico de bípede, nem pelo valor intrínsico do galináceo, mas por ousares transpor os umbrais de minha residência. se for por mera ignorância, perdôo-te, mas se for para abusar da minha alma prosopopéia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados que dar-te-ei tramanha bordoada que transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.

O ladrão todo sem graça, perguntou:

 - Mas como é, "Seu Rui", eu posso levar o frango ou não?

Keila Kariza Kiska



segunda-feira, 8 de abril de 2013

Casa de Vô
                                      Beatriz Vichessi




Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de resto, é diferente.
Minha avó também não é igual as outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em casa. De calça comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.
Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar as portas e, como ascensorista, anunciar:
- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas...
A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.
Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei.
- Hã? Como assim?, pergunto. Essa é nova.
Vovô explica sua invenção:
- Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços.
Eu começo.
- Pisei?, pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.
- Não!
- Pisei?, insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.
- Não!
Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.
- Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei?, convido.
- Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar.
Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela sendo armada e das folhas nas mãos dele.
Sigo.
- Pisei?
- Pisei?
- Pisei?
E nada.
Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um abraço de vitória.
- Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos braços dele.
- O vento foi levando tudo para o cantinho do portão, ele explica, sorrindo.
- E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado...
- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim.
Moinho de Sonhos
                                                        João Anzanello Carrascoza



A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a pé. Andavam sem rumo havia semanas, até que deram numa aldeia à beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.

Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de serviço abundante, resolveram ficar. O homem arranjou emprego num moinho próximo à aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante.

Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um escudo e uma espada de pau.

Os dois se observaram à distância. Cada um se manteve junto à sua mãe, sem saber como se libertar dela. Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos são assim: se há abismos, inventam pontes.

De súbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo esse já sabia o nome daquele: o menino recém-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho.

Começaram a se misturar:

- Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho.

- Só se você me emprestar sua espada, respondeu Alonso.

Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.

Avançaram na entrega:

- Tá vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho é que faz ele girar.

- Seu pai deve ter braços enormes, disse Sancho.

- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro.

Sancho achou graça. Também tinha uma proeza a contar:

- Tá vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o céu não dá para cobrir ela toda.

- E se a gente esticasse o céu como uma lona e cobrisse o que está faltando?, propôs Alonso.

- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalhão.

- Temos de crescer primeiro.

- Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir até o céu! - disse Alonso.

- Vamos!, concordou Sancho.

Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.

Já eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho.